quarta-feira, 30 de outubro de 2013

ABADIE DE SENANQUE E OS CAMPOS DE LAVANDA

        Em busca dos campos de lavanda, pusemos-nos na estrada. O caminho nos levaria até eles, nas cercanias de um velho mosteiro. Isso já era o bastante para que uma sensação de liberdade me invadisse. Pela rude simplicidade imposta aos monges cistercienses ao longo da história, pude imaginar a austeridade do próximo destino: Abadie de Senanque. Uma sobriedade adornada pela natureza.
       Entre as curvas do Luberón escarpado, no coração da Provence, o mosteiro é um refúgio escondido no vale próximo a Gordes, cerca de 6Km que parecem infinitos de tão estreitos. Os ciclistas do Tour de France parecem estar fazendo seu aquecimento por ali, tantas são as bicicletas se aventurando pela região.
Estrada para Senanque
         Por mais que se tenha lido a respeito, o caminho até Senanque não deixa de ser uma apreensão deliciosa, pelo fato de não se estar certo se será ou não possível avistar e tocar os famosos campos de lavanda.
         Do alto da estrada sinuosa, vagarosa e minúscula, avista-se a tão desejada cena lilás. Um quadrante exuberante e demarcado em meio ao verde que se agiganta. Senanque estava tão próxima dos olhos, mas tão vulnerável aos nossos pensamentos quanto o silêncio ameaçado de seus monges, habituados ao imediatismo dos turistas que se avolumam entre os meses de verão.
Campos de lavanda
           O contraste é o que justamente nos aproxima de Senanque. A ordem cisterciense na Europa, com origens no século XII, impôs estilo de vida, arte e arquitetura que rompiam com adornos e rebuscamentos. Como seria possível uma vida sem floreios se os campos de lavanda dominam e colorem seu entorno? Como, se as lavandas envolvem todos os nossos sentidos?
Abadia Cisterciense de Senanque
Campos de lavanda ao seu redor
    Eu estava mais errada do que certa. A pobreza imposta ao estilo de vida dos mosteiros nem de longe tiraria a riqueza de seu entorno, por mais que se tente disfarçar. A falta de torres imponentes e a fachada não sobressalente da abadia ficaram no imaginário de eras medievais. Por mais que tudo permaneça igual, nada é como antigamente. 
Produtos da Provence
Produtos de lavanda
    Fundada em 1148, a abadia ainda permanece em funcionamento e visitas guiadas são organizadas para que seus claustros sejam percorridos. No exterior, o maior contato que se estabelece com alguém de lá acontece na lojinha que vende artigos feitos de lavanda e demais maravilhas provençais. As pedras ocres situam-se na transição entre o estilo românico e o início do gótico. Seus muros, típicos de mosteiros desta ordem religiosa, são uma referência a Jerusalém Celestial descrita no Apocalipse. Mas, pelo que se abstrai, o isolamento e a clausura dos monges estão mais longe das suas pretensões e mais próximos da balbúrdia de turistas curiosos. De fato, é o contraste que nos move.
Outros ângulos de Senanque
Lavandas
      Mas o que nos arrebata em Senanque não é sua história nem sua arte, que remontam às origens e disseminação dos cistercienses pelo mundo. Sobre isso, poucos que passam por lá sabem e talvez nem queiram compreender. O que arrebata em Senanque é a sua pintura, vista assim, à primeira vista: o contraste do nude com os campos de lavanda arroxeados, em fileiras retilíneas, dançando ao som do vento.
     Sua música em meio ao silêncio, sua sutileza entre os dedos, o seu perfume impregnando um aroma inolvidável em nossas narinas, são as chaves irresistíveis de uma viagem que nos faz querer mergulhar na imensidão lilás e ficar sempre um pouco mais... Andar entre as trilhas, por entre os espaços vagos lado a lado das carreiras coloridas de lavanda, é uma aventura delicada: a síntese de se estar na Provence.


Lavandas
         Nada disso faz-nos ater para o fato de que somente na Provence se tem a lavanda pura e verdadeira, ou que todas as outras formas que podemos encontrar por aí são “lavandin”. Somente na Provence se tem a combinação perfeita para que a verdadeira lavanda se desenvolva. Embora estejamos à sua busca, olhar os mares impressionantes de arbustos equidistantes bastam para uma vida, muito mais do que qualquer informação que possa preencher nossas lacunas.
         Sua púrpura delicadeza enche de ambivalência a atmosfera. Naquele ponto da viagem pude captar a essência e a distância entre uma vida rotineira e enclausurada em suas próprias concepções de mundo, e a vida dos que chegam, sentam, ficam, passam... e fotografam, fotografam... carregando depois um ramo cheiroso como troféu na volta de suas férias. Florir a vida é o que vale.
Também sinto, muitas vezes, os turistas como seres enclausurados, por que não? Enclausurados em suas pequenas concepções e certezas que constroem com adornos, sei lá de que cores, sobre qualquer lugar depois de uma passagem fugaz. Ou não. Livres, talvez... Eu os sinto mais livres do que presos. Muito livres para imaginar, viver, explorar qualquer canteiro, qualquer quintal, qualquer campo maior de sonhos o ano inteiro, a vida inteira, não importa a estação.
           Afinal, a vida acontece aqui fora. Com ou sem perfume de lavanda.
      O mosteiro ficou para trás, plantado aos pés dos campos cor de púrpura, e retomamos a nossa estrada.