domingo, 29 de setembro de 2013

GORDES - PINTURA FRANCESA EMOLDURADA PELA PROVENCE

           Cruzando os caminhos sensoriais da Provence foi que subitamente avistei a imagem que havia chamado a minha atenção enquanto planejava o roteiro, ainda no Brasil. Dentre suas rotas cênicas, havia muitas opções, mas a estarrecedora imagem de Gordes foi contornando meus sentidos e me envolveu de tal forma que, esses mesmos sentidos, haveriam de me levar até lá. Eu faria todos os caminhos para alcançá-la. E foi ao fazer a curva da estrada sinuosa que nos levava às suas proximidades que a vislumbrei esculpida na montanha.
A imagem de Gordes vista das curvas da estrada
       Foi como ver uma pintura emoldurada pelo romantismo da Provence, delicadamente desenhada no Departamento Francês de Vaucluse, no maciço de Louberon (integrando o Parque Natural Regional do Luberon). Um misto de opacidade com traços finos de verde e pinceladas de céu claro. Particulares impressões de luz e movimento sem nitidez demarcada. Um quadro dinâmico que havia estado estático por meses em minha concepção de seus contornos. E tudo ganhou vida e forma ao ávido mover de nossos passos. Foi quando vi que a realidade é mais interessante que os sonhos, às vezes. Raríssimas vezes, mais intensa que a arte.
Gordes foi parecendo mais real à medida que nos aproximávamos. Suas pedras brancas e secas posicionadas despenhadeiro abaixo davam forma às casas sobrepostas, dando fôlego à ideia de embrenhar-me em uma França rural. As estradas secundárias é que levam a uma verdadeira experiência francesa. Bisbilhotar seu modo de vida íntimo e peculiar seria quase invasivo, não fosse pela frequência com que os turistas se habituaram a fazê-lo.
Estrada que levava à Gordes e as casas de pedras secas
            A paisagem mudava de figura. As peças mudavam de lugar. Paris já estava distante. Tão distante quanto o sonoro TGV, o trem que nos conduziu até Avignon, mas que por ali não se aventura. Desde Avignon, foram cerca de 40Km apenas. Estávamos na Região administrativa Provence-Alpes-Côte-D’Azur. E eu nunca pude compreender de fato o que classificaria tudo aquilo melhor do que as minhas impressões pessoais. O interior da França em sua melhor escultura. Uma França que se desenhou de diferentes formas, mas que naquela colina encontrou seu ápice em minha memória.
            Seria ainda necessário lapidar o que vimos. Desconstruir conceitos. Ganhar a nossa impressão de Provence e das curvas do vilarejo. Então chegamos à Gordes, muito curiosos sobre o que encontraríamos.


Pequena rotatória na entrada da cidade
Adentramos à extraordinária vida de sossego da Provence. E tudo por lá se situa na linha tênue das sensações: o aroma, o bucolismo saudosista, a sonoridade sutil de seus passantes, a paisagem outrora abstrata mas que então podia ser tocada, a abstração do que se vê, e tudo que não se pode ver, mas se fantasia. A imaginação então flui melhor do que as palavras, mesmo que nem se arraste o francês.


Romatismo da Provence
Só um pouco do que a Provence oferece
E a imaginação inevitavelmente nos ganha. Depende de nós o modo como se absorve os desenhos das construções perfeitamente encaixadas entre si, a vegetação brotando de suas junções, as feiras coloridas, o frescor de seus alimentos, a vida que acontece aqui fora. Há uma cor sutil saltando de suas janelas de tons lilás e das floreiras que as acompanham, para enfeitar a alvura das pedras das construções do vilarejo. Há hortas, mel, ervas da Provence, cheiro de lavanda por toda a parte e sabor de infância em muitos de seus detalhes.
     Até nos perguntamos a razão pela qual não temos os mesmos hábitos, pois afinal, os franceses fabricam os produtos que vão à sua mesa com muito cuidado. Há receitas seculares e fórmulas de fazer as coisas que perduram por gerações. As estações do ano determinam o tempo de colher e de plantar. Está presente a sutileza de quem vai preparar com graça e arte o melhor da vida. Provar os sabores da Provence é o grande barato da viagem.
Ruas estreitas e charmosas de Gordes
      O vilarejo deve ser explorado a pé. É só se perdendo que se pode encontrar a verdadeira razão de estar em Gordes. O momento é seu. Viver um dia na Provence. E não apenas passar como um turista qualquer.
Mas é preciso estar com os olhos atentos aos detalhes. Não há pressa naquelas plagas. A dimensão do tempo, ali, não encontra referências no tempo que passa através de nossas janelas.
Você não vai querer partir. E vai ficar em uma grande incerteza se quer alcançar logo outra cidade para ver mais e mais, ou se vai querer que o tempo não ande para que Gordes não seja de novo uma imagem perdida na montanha, que se desenha em suas lembranças, mas que lentamente vai se tornar fosca com os passar dos anos. Tal qual uma lembrança impressionista sem traços nítidos demarcados...
Sutileza de cores 

Bistrôs provençais
          Os encantos de Gordes estão escondidos em suas ruas estreitas pavimentadas em pedras. Há lojinhas, flores, pequenos bistrôs, vida por toda a parte. Seu patrimônio advém desde a época dos assentamentos romanos na região. Pode-se deparar com a Igreja de origem romana, e com o Castelo Renascentista, que se escondem na paisagem de cores iguais. Mas não é de se espantar se não percebê-los de súbito, como se perceberia essas construções em outro local. Tudo está nivelado pela intuição que nos invade de percorrer seus labirintos medievais, e não pela corrida maluca por monumentos. 
Castelo em meio ao desenho de Gordes
Beleza medieval
Igreja
            Gordes teve grande reputação no passado pela tecelagem, pela arte de trabalhar a lã. Mas hoje, é da fama de um dos vilarejos mais bonitos da França que sobrevive.

Os encantos de Gordes

             Ao seu redor, como moldura mutante, há girassóis e trigos, ciprestes e oliveiras. Mais do que isso, os vinhedos se desenvolvem, as uvas amadurecem ao clima suave do Mediterrâneo e as lavandas florescem, principalmente entre os meses de junho e agosto. Ondas púrpuras a perder de vista se alongam às margens do caminho, dançando no ritmo do vento. Para vê-las, depois de algum tempo percorrendo as ruas de Gordes, era necessário ganhar outros campos da Provence, outros vilarejos, novas sinuosidades. Deixá-la não foi tarefa fácil para os sentidos, apesar das placas que apontavam a saída. Mas deveríamos ir para um encontro com a Abadie de Senánque, em suas redondezas.


Saída de Gordes
        Ao longe, novamente na curva oblíqua dos caminhos que me levaram até ela, conseguimos um local para estacionar o carro e contemplá-la por mais tempo do que pudemos em nossa chegada. Como se reter aquela imagem dependesse dos instantes que a absorveríamos. Quanto mais, melhor.


Despedida do vilarejo
          Fora dos Museus de Paris, Gordes será uma obra intensa em minha lembrança, delicadamente construída sob um olhar impressionado. Foi com o âmago que captei aqueles instantes, concernentes aos ângulos e à iluminação com que a enxerguei. E estava tão florida, tão clara e precisa! Sem contrastes com a minha alma, em sintonia profunda. Tratarei de mantê-la, nos anos que nos distanciarão, delicadamente protegida das camadas de poeiras e obscuridades que se acumulam sobre nosso passado.
Gordes será o quadro mais lindo que jamais colocarei em minha paredes externas. É um segredo bem guardado, pois mesmo que revelado, só a podem sentir aqueles que deram um passo adiante e adentraram em suas intensas entranhas e o tornaram realidade.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

CURAÇAO E O AZUL QUE CORRÓI MINHAS LEMBRANÇAS

Uma das maravilhas de sobrevoar Curaçao é a vista impactante que se pode ter da cor de suas águas desde lá do alto. Um campo de força azul turquesa demarca o território de suas férias, como se isolasse a ilha do mundo, que continua seu curso lá fora. As águas calmas e cristalinas ditam o ritmo de seus próximos dias no Caribe e mantêm a ilha nitidamente apartada da escuridão das águas profundas. Um distanciamento que cai bem para quem apenas precisa de uns dias no paraíso.
Quando se toca o solo, vê-se que o azul dá o tom, mas o colorido de Curaçao está espalhado por toda a ilha. Os detalhes se revelam nas cores caribenhas e contornos de sua arquitetura, visivelmente herdada dos traços holandeses. Mas ao final da viagem, serão mesmo as suas águas azuis turquesas, contrastadas com uma mudança abrupta de tonalidade quando se distanciam da costa, que corroerão seus pensamentos saudosistas, assim como corroeram seu entorno rochoso, por anos a fio.


Willemstad - Punda
Sei disso. Há muitos anos Curaçao fez parte de minha primeira e tão sonhada viagem internacional. Na época, eu estava aflorando para a vida. Depois de construir e lapidar meu futuro, o desejo de ver a ilha por outro ângulo estava ainda em meus planos.
Deu certo. Chinelo nos pés, nada para fazer e muito com o que se maravilhar. Deveriam ser: dias sem planos, caminhos sem rumos e pensamentos soltos. E assim se fez.
Blue Bay Beach
Havia espaços, detalhes, surpresas a desbravar delicadamente, fosse através das praias mais distantes do lado Oeste da Ilha (as mais belas) ou apenas através de suas casas de muitas cores na capital Willemstad, que ainda reluzem quando golpeadas pelo sol. As matizes dos meus tempos de agora me deram um olhar mais maduro sobre tudo.
Inclusive sobre sua história. Descoberta pelos espanhóis em suas explorações do Novo Mundo no ano anterior ao descobrimento do Brasil – 1499 – a ilha foi frequentada também por portugueses e holandeses. Os ibéricos não viram vantagens por não encontrarem nela ouro para suas pretensões, e não se alongaram mais do que eu me alongaria em uma daquelas praias... 
Os portugueses foram os responsáveis pelo sugestivo nome da ilha. Ilha da Curaçao era onde se praticava a cura do enfermos escravos africanos, acometidos por escorbuto, que nela eram tratados com doses de vitamina C, obtida pela laranja que ainda hoje é a essência de seu famoso Licor: O Curaçao Blue. Desde que a Companhia das Índias Ocidentais a reclamou como sua, em 1634, a difícil pronúncia pelos holandeses fez com que o nome tomasse a sonoridade atual. Se isso é lenda apenas ou verdade, não sei. Mas soa como um detalhe interessante.

Fábrica do Curaçao Blue


Curaçao Blue
De suas fazendas conhecidas como plantations de cana de açúcar, não há tantos vestígios. Quem conhece a história, ao transitar por suas estradas bem conservadas, vai tentar imaginar onde e como foi que as Antilhas Holandesas (Aruba, Bonaire e Saint Maarten fazem parte deste rol) conseguiram dominar o comércio e derrocar o domínio do Brasil. Há muitas fazendas para se visitar, assim como na Ilha há muitos Museus que contam as histórias dos ancestrais que nela viviam antes de toda essa parafernália – os índios Arawaki. O domínio holandês do tráfico de escravos africanos deixou um rico legado cultural e linguístico para a ilha. Em Curaçao, assim como em sua vizinha Aruba, fala-se inglês, espanhol, holandês e papiamento: uma mistura do espanhol, com o holandês, dialetos africanos e o português.
Mas o domínio holandês ainda está presente em suas ruas e praias. Talvez ainda a sintam sua e estão à vontade com isso. Uma filial tropical de seu país. Curaçao se tornou um país autônomo desde 2010, mas mantém seus laços estreitos, pois mesmo autônomo, ainda pertence ao Reino dos Países Baixos.
A aridez da ilha, enfeitada pelas iguanas que atravessam despretensiosamente seus asfaltos bem construídos e escaldantes, dariam o tom do deserto. Não fosse pela certeza de que se está no Caribe, o seu azul seria apenas uma miragem.


Caminhos áridos de Curaçao
O ritmo caribenho, a alegria das pessoas e a busca pelas praias de cores espetaculares, fazem-nos saber o tempo todo que Curaçao tem muito de todo o Caribe, mas como toda ilha, está repleta de particularidades. Uma delas é que seu litoral, apesar de suas proporções, não é feito de muitas praias. Suas encostas rochosas são mais evidentes. Por isso mesmo, há algo diferente em Curaçao: a existência de praias particulares (praias de Hotéis ou não, como a de Blue Bay) e praias que tiveram que ser parcialmente construídas por mãos humanas, com areias trazidas de fora. No fim das contas, ficaram boas também. E valem ser conhecidas, mas o melhor de Curaçao está no que a natureza já havia se incumbido de fazer. Aliás, é imperativo que se esteja de carro na ilha para que tudo seja explorado da melhor maneira possível. 
      A ilha é dividida entre a sua porção leste, bem habitada e com pinta de bem organizada, e a porção oeste, onde as belezas naturais se evidenciam significativamente. Circula-se facilmente pela Capital Willemstad, pois há facilidade de estacionamento para que se explore o seu Centro charmoso, conhecido por Punda. A região é muito fotogênica, estampando os cartões postais de Curaçao. Por ali, há muitas lojas e a área é de livre comércio. E não se pode deixar de conhecer Waterfront, com ótima culinária.

Willemstad - Punda


Waterfront - restaurante
As pontes que ligam um e outro lado de Curaçao são também intrigantes. Uma delas, a Queen Juliana, ergue-se imponente no Porto principal (St Anna’s Bay) e presenteia os turistas com uma vista magnífica lá do alto, dos ângulos de Punda, Otrobanda e Schottegat. A outra é a “Ponte de Pinguela Rainha Emma”, onde os pedestres podem atravessar tranquilamente, no nível do mar, até que soe um apito indicando que a ponte irá se abrir para que alguma embarcação passe. Os caminhos se fecham, quem está em cima espera, e quem está de fora acha uma maravilha esperar, fotografar e filmar.


Ponte sobre barcos

Vista da ponta, entre Otrobanda e Punda
Do lado melhor habitado se encontram a famosa praia do Seaquarium, a praia de Jean Thiel, e outras montadinhas para os turistas aproveitarem o melhor do mar azul. Mas o oeste da ilha, ou seja, o lado oposto, foi o que mais nos encantou. Explorar Curaçao é uma experiência incrível, dessas que renovam qualquer amor, que ajudam a curar feridas e que te recompõem.
Praias montadas do Seaquarium

Linda vista

Seaquarium
Anda-se um bom trecho para se chegar às melhores praias. Quanto mais se distancia do centro, os caminhos vão ficando mais desertos. Atingir praias como Kennepa Gandi é uma expectativa muito bem correspondida.


Kennepa Gandi vista do mirante
O visual de seu mirante e o vislumbre de sua simplicidade, lá do alto, prometem muito, mas menos do que de fato se consegue quando se passa o dia nela. Esta, que é a praia pública mais linda da ilha, faz com que se experimente sensações diferentes ao longo do dia, assim como quem acompanha as mudanças do sol ao longo das horas. Doar nosso tempo para prestar atenção a esses detalhes só é possível quando a dimensão do tempo perde o sentido e se torna um detalhe divagando como barquinho na imensidão do oceano.


Kennepa Gandi

Águas florescentes de Kennepa Gandi

Fim de tarde do mirante
A paisagem e a cor da água em Cas Abou, uma outra praia arrebatadora com sua pedra que parece flutuar sobre as águas, convencem que Curaçao é algo bem próximo do paraíso particular que se ousou buscar ao sair de casa. Aliás, Cas Abou é uma praia pela qual se paga para entrar (mas é bem baratinho), assim como Porto Marie. Essa, menos selvagem, mas muito bela também, convence que o mar do Caribe é absolutamente necessário, dentro de sua trivialidade, para as almas cansadas, nem que seja uma vez na vida.


Cas Abou

Tons diferentes de Curaçao

Águas muito claras

A pedra de Cas Abou
    Curaçao me arrebatou. Passar o dia alisando o mar azul, entregando-se a ele sem coragem de sair da água, maravilhando-me com a cor fluorescente e a luminosidade que o sol lhe dava, não me cansou nenhuma vez. Era como estar ali para experimentar de volta a vida da qual eu havia me distanciado. Canto de pássaros, nenhum som invasivo de balbúrdia na praia, apenas muita discrição e a água acalmando todos os meus sentidos. Curaçao deve mesmo ter sido feita para amansar os corações escravizados em suas rotinas. Particularmente, o seu real significado. 


Porto Marie

Porto Marie e seus tons de azul

Porto Marie
O azul vai por muito tempo ainda lamber os meus pés cansados. O azul que apascenta nossos dias e deixa tudo em nosso mundo também mais azul. Adormecer aos som dos pássaros que revoam minhas lembranças, ainda estendida na areia, não será impossível quando eu fechar os olhos em qualquer lugar que esteja.
Não tenho uma razão para gostar tanto de Curaçao, mas várias. A imagem do Caribe ficando para trás, com sua redoma azul com a qual me protegi ao longo de uma semana, não foi tão fácil de encarar quanto em nossa chegada. Dizer adeus é um processo diário e necessário. Chegar e partir. O que me consola é que saí com a sensação de ter lavado a alma com a água mais turquesa que o Caribe já me presenteou. Pelo menos naquele momento, com a sede que eu estava de viver daquele jeito...